Nas pedrinhas do Caculuvar,
brincava meu amor
- e como era bom lá brincar!
Era o tempo de águas cantando;
das folhas caídas,
que os pés, descalços, pisavam.
Águas correram pela vida,
em rápidos, nas estreitas passagens,
nas travessias das pontes do medo.
Distantes hoje estão os regatos
da infância, a pureza.
Fresca, só esta ferida.
Nas pedrinhas do Caculuvar,
brincava meu amor
- e como era bom lá brincar!
No platô, para lá do paredão,
margem direita do precipício,
tiveram avós e pais vida difícil.
Muitas sementeiras de cereais,
muitas canseiras, muitos ais,
para ver crescer seu pão.
Dia após dia, cedo escurecia;
pela névoa cerrada anoitecia:
o tesouro da água de rega,
vinha lá de baixo da serra
(prodígio anti-gravitacional),
- seu pão, sua luz, o seu sal!
Neste lugar
d'África
instalei o meu altar:
neste lugar
ouço o silêncio
de estar a sós com Deus.
De mim perdido,
agora neste lugar
me encontro.
Rafael, meu filho,
vem; das celestes paragens desce
(para onde há vinte anos emigraste).
Vem, pela mão de um anjo,
desce à nossa chitaca,
vem nela passear (- ouve o riso do teu mano...)!
Vem, de mãos dadas
passaremos a Laplace
e verás de tua mãe iluminar-se a face!
Vem, libertaremos da saudade os ímpetos,
descobriremos novos aromas nos eucaliptos,
contemplaremos a frescura da cascata
- esta é a terra dos avós, a Humpata!
Vem, Rafael, meu filho;
leva-me nas tuas asas para o Iona,
fala-me das outras divinas cores
que conheceste em todos esses anos de mim distante;
apaga-me esse apagado tempo em que tão árido fiquei,
como esse deserto...
Olha, meu Amor,
aquela curva do Cunene,
bela e solene,
à nossa espera: vamos apagar a solidão.
Estão lá, na mesma margem,
duas rochas quase planas, como lajes,
onde podemos ficar a olhar o carmim deslumbrante do ocaso.
Fica um pouco mais comigo neste dia,
esperando aquele em que juntos para sempre estaremos.
de estaca
plantava meu pai
o que o seu tio
já plantava:
plantou bem fundo no meu peito
esta agridoce paixão africana...
cinquenta anos o rebento germinou;
um dia minha alma acordou, surpreendida,
ao colo das raízes de um embondeiro...
dos homens já pouco mais nos resta
que os olhos grandes dos meninos assustados
que as sombras sobre a face das suas mães;
de homens já pouco nos resta.
resta-nos uma geografia pobre
como a dos pés cheios de gretas
(que das mãos os calos já se desfizeram,
por falta de terra, perderam as enxadas sentido)
despojados de todos os sentidos,
falta-nos tudo para Homens sermos;
e é com o pouco que deles nos resta
que de nós Deus espera dobremos a aresta
Vinde,
da Humpata a chitaca não dista muito.
Aqui, nossas simples casas
todos acolhem,
com a fresca paz
do seu chão de lajes cor-de-rosa...
Nelas,
ouviremos contar as histórias
dos nossos valentes avós.
pela chitaca deambulando,
durante todo o dia andei,
todos os segredos aprendendo,
subindo e descendo, caminhei.
arranhei-me nas espinheiras,
enlameei-me nas mulolas.
encostado às mulembas,
à sombra matando a sede,
por um fresco nó de bambu,
feliz de cansaço, descansei.
num dia, todo o universo
toda a vida, o mundo todo,
vivido fosse com a alegria
da chitaca, apenas de um dia...
Aqui, queridos amigos,
no encontro da serra com o deserto,
avistando o horizonte pela fenda,
cá encontrareis vossos abrigos
- que do coração a chitaca está bem perto,
e nela podereis instalar a vossa tenda...
Do chão que nos abraça,
vem um calor de mãe,
dulcissima fragrância;
pelos puros ares enlaça
esta terra, a quem vem
pelo sentido da existência.
entre as nascentes
e os mukuluventes,
mirangolos e mandombos;
frutos do mato,
aromas envolventes;
abundantes águas,
jambros, mambolemboles,
noxas e anonas;
caminhava, ria,
pés soltos sobre o capim,
soltando-se, voava, a alegria,
que ainda hoje não cabe em mim.
Voltei. Estavas bela.
Por ti, subiram nossos avós a Chela.
Quinhão do Paraíso sobre a Terra, concedido;
por esforçados braços, à Natureza merecido.
No chão que o labor lavrou,
nesse chão, que o suor fecundou;
nesta terra, sempre o nosso coração ficou.
Nela, novos socalcos de poesia sulcaremos;
aqui, agora e sempre estaremos!
Era uma vez um kuvale,
vida sem boi não vale;
era uma vez uma muhuíla,
crista pintada em argila;
era uma vez um muhumbe,
traz mel e abelha que zumbe;
um nhaneca da Donguena,
trazia linda mufikuena.
Era uma vez um ganguela,
caçou esbelta gazela;
um que veio era Gambo,
outro veio do Quipungo;
o que chegou era Hinga,
ouvira falar da Ginga;
lá das bandas de Quilengues
até vieram os kandengues.
Meu amigo, e os Mucuisses?
Apanhavam-te, se fugisses!